Em meados de junho, um barco de pesca foi flagrado em atividade dentro da área que compreende a Reserva Biológica Atol das Rocas (REBIO), a primeira Unidade de Conservação (UC) instituída no Brasil que conta com proteção integral. Ou seja, o principal objetivo da REBIO é a preservação integral dos seres vivos e demais atributos naturais existentes ali. Desta forma, a pesca, caça, atividades recreativas e de turismo são proibidas.
Apesar disso, a embarcação em questão vinha sendo monitorada há algum tempo nas imediações de Rocas e também em Natal. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) é o órgão gestor da área que abrange o Atol e as águas circundantes até os mil metros de profundidade, e, de acordo com Maurizélia de Brito Silva, a Zelinha, servidora do ICMBio e chefe da REBIO, ” esse barco estava sendo monitorado com um drone com o propósito de flagrar o crime ambiental. Fizemos imagens em maio, e os pescadores voltaram para a reserva na quinta-feira, dia 10 de junho”.
A partir daí, Zelinha passou a acompanhá-los fazendo uso de uma embarcação. Assim que notaram a aproximação da equipe do ICMBio por água, os pescadores permaneceram no Atol mas se afastaram com o barco, abandonando algumas redes onde estavam presos 38 animais – incluindo um mero – e outras espécies ameaçadas de extinção.
Zelinha conta que os meros são avistados na Unidade de Conservação, mas não é fácil encontrá-los em todos os mergulhos. O exemplar que estava preso à rede tinha cerca de 1,5 metros. “A rede que tinha o mero e o tubarão lixa foi a primeira que puxamos, e quando ela esticou eles se debateram e se soltaram, vivos“, comemora.
No Brasil, a captura, transporte, beneficiamento ou comercialização de meros são práticas proibidas desde 2002. Nesse mesmo ano, o Projeto Meros do Brasil, patrocinado pela Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental, foi criado para somar esforços à conservação dos meros e dos ambientes em que vivem.
Além do mero, um tubarão lixa, uma garoupa-mármore, duas raias, dois caranguejos-guajá e 27 lagostas, foram soltos com vida. Um budião-papagaio e duas lagostas já estavam mortos quando a equipe conseguiu soltá-los.
Dois caranguejos guajá foram soltos com vida junto com outros 33 animais.
Só 35 animais salvos? Parece pouco, mas acredite, não é.
“Rocas têm importância ecológica fundamental por sua alta produtividade biológica sendo responsável pelo repovoamento dos bancos de pesca do Maranhão, Ceará e Rio Grande do Norte. É um berçário natural onde as populações de animais marinhos, entre esses, peixes, moluscos e crustáceos, muitos com grande importância comercial, como as lagostas por exemplo, vão apenas para reproduzir,” explica Zelinha. A área é também uma importante zona de abrigo e alimentação para diversos animais.
Assim, além do fato de que esses animais, como todos os outros seres que habitam o Planeta, têm direito à vida, cada espécie e indivíduo que vive nesse ambiente singular, cumpre uma importante função na manutenção de Rocas, de sua biodiversidade e de todo o Oceano. O que explica porque as atividades de pesca podem ser tão danosas para o Atol.
A servidora do ICMBio atua no local há mais de três décadas, e conta que há muito tempo não tinha presenciado problemas assim. “São 30 anos de batalha e esse barco estava sendo um gargalo aqui para a UC. Mas montamos uma estratégia envolvendo várias instituições, o Ibama, a Polícia Federal, a Capitania dos Portos, e também a imprensa”, fala Zelinha nos dando a ideia de que é preciso muito esforço e ações em parceria para proteger a vida marinha.
Quando a embarcação finalmente deixou o Atol, Zelinha retornou às atividades de monitoramento e relatou que foi emocionante ver os peixes se aproximarem dela durante um mergulho, “o Atol sobrevive”.
Contudo, é importante estarmos atentos para o fato de que a pesca ilegal seja em locais proibidos ou pela captura de espécies protegidas, como aconteceu nesse caso, continua sendo uma séria ameaça à biodiversidade marinha.
Em resposta sobre como podemos lidar com a persistência dessas práticas ilegais, Zelinha destaca: “Aqui temos conseguido minimizar os impactos da pesca, afastar os infratores. Não podemos deixar que um infrator seja mais forte que a legislação ambiental ou que a Reserva Biológica”.
Ao final da entrevista, Zelinha nos deu um depoimento emocionante de quem tem uma história de vida pautada no cuidado e no zelo pelo Oceano, ouça clicando aqui.
Quem sabe esse nome carinhoso de Maurizélia, a Zelinha, não seja apenas uma coincidência, mas seja sim, a insígnia daquela que zela por Rocas, pela vida marinha, e por esse pedacinho de Oceano de todes nós.
Maurizélia de Brito Silva.
Agora vamos falar de ciência?
Como um mero que depende dos estuários e manguezais para crescer nos primeiros anos de vida foi parar a quase 300 quilômetros da costa, em Rocas?
Mero residente no Atol das Rocas.
De fato, a distribuição dos meros no Atlântico oeste – desde Santa Catarina, no Brasil, até a Carolina do Sul, nos Estados Unidos – coincide com lugares onde existem manguezais, exatamente por essa relação de dependência na fase juvenil.
Porém, como tem sido constatado através de relatos e pesquisas científicas, é também possível avistar indivíduos em áreas mais distantes da costa, onde não existem ambientes de manguezais, como é o caso das ilhas e montes oceânicos brasileiros.
Existem duas hipóteses que explicam como os meros podem chegar a esses locais: nadando quando adultos ou por meio do transporte larval – quando as larvas são levadas pelas correntes.
Primeiro é importante notar que, embora frequentes, estas ocorrências não são de populações, mas de poucos indivíduos, ou seja, nunca foram observados nesses ambientes grupos reprodutores ou pequenos juvenis, indicando que a reprodução não ocorre por lá e que não há população estabelecida.
Depois, embora as grandes garoupas, família ao qual o mero pertence, sejam associadas ao fundo dos ambientes aquáticos, existem registros de deslocamento de indivíduos adultos em áreas oceânicas abertas, nadando na coluna de água.
Ainda, pelas pesquisas que desenvolvemos com o auxílio da telemetria, sabemos que os meros são grandes nadadores e que são capazes de se deslocar por longas distâncias. E, desde a costa até Rocas e Noronha existem conectividade através dos bancos oceânicos da cadeia submarina.
Assim, para o caso do mero no Atol, prevalece a possibilidade de que ele tenha chegado lá nadando.
Como última observação, o transporte larval não pode ser totalmente descartado, mas seria bem mais difícil pois envolveria o transporte contra as correntes predominantes, e a sobrevivência em um ambiente diferente durante a fase juvenil, fora de áreas costeiras (manguezais), o que ainda não foi constatado.
Atol das Rocas
Um atol se forma por um processo lento que pode demorar milhares e até milhões de anos. São ilhas oceânicas circulares constituídas a partir de uma antiga formação vulcânica, que com o passar dos anos foi encoberta pela água, “afundando” e acumulando ao seu redor recifes de coral e outros invertebrados.
Dos 425 atóis existentes no mundo, Rocas é o único do Atlântico Sul. Está localizado a 270 km de Natal (RN) e 148 km de Fernando de Noronha (PE). Criada em 1979, a Reserva foi declarada Sítio do Patrimônio Mundial Natural pela ONU em 2001. Em 2016, recebeu um novo reconhecimento mundial sendo considerado Sítio RAMSAR (Zonas Úmidas de Importância Internacional).
Para descobrir um pouco mais sobre esse pedacinho de paraíso nas águas brasileiras, veja o documentário Atol das Rocas: O Atol esquecido, de Lawrence Wahba ou acesse o Portal do ICMBio.
Dos 425 atóis existentes no mundo, Rocas é o único do Atlântico Sul.
Créditos das imagens em ordem de aparição:
Maurizélia de Brito Silva – Programa de Monitoramento da UC
Drausio Veras – UFRPE
Maurizélia de Brito Silva – ICMBio
Alice Grossman – All Angle